sexta-feira, 11 de março de 2011

A Rota do Mar Sem Fim



Se há um Livro da Luz, é porque já houve um Livro das Sombras...

Se há hoje uma praia calma e tranquila banhada em sol ao meu redor, com sua areia dourada e sua água de espelho que reflete o céu, é porque percorri a estrada que me trouxe até aqui, e ela nem sempre foi asfaltada, pelo contrário atravessou matas fechadas, curvas perigosas e ladeiras esburacadas, com pedras para se desviar, noites escuras e tempestades a se superar.

Um dia eu fui uma criança, como todos um dia foram, mas eu era uma criança um tanto quanto perdida em meus mundos de fantasia, que brincava de casinha com bichinhos que acreditava estarem vivos e serem de fato seus amiguinhos.

Um dia eu fui uma menina, que tinha um reino imenso que se chamava jardim, e cujos habitantes eram folhas verdes e flores de cores sem fim.

O Reino era imenso, tinha uma rua central de pedras que se pareciam com finos ladrilhos brilhantes em meu olhar. No reino eu brincava segura, imaginava bailes em seu imenso salão, cavernas com segredos e brilhantes entre as suas pedras, cidades bairros e nações entre seus canteiros. O tempo passava e eu mergulhava em fantasias neste imenso reino que era na verdade um grande jardim.

Mas um dia o jardim se foi. E eu fui embora e nunca mais voltei ao meu reino, não havia muito de dramático e triste nesta partida, era apenas a vida, que seguia seu curso de rio caudaloso e se esparramava por entre as cachoeiras da Serra sem Fim.

Como todas as crianças, eu parti sim com alegria e com esperança, brilhos em meu olhar, que brilhava com todos os sonhos e projetos que ainda estavam para surgir depois de cada manhã, esperança em meu coração que fazia ele bater, brilho intenso de uma linda manhã de minha vida, que nunca mais se apagou em minhas lembranças, sonho de menina embalado em magia e arco-íris de flor.

Então eu fui parar em um novo jardim. Este não era tão grande quanto aquele, mas era o futuro que chegava para mim. O mundo também não era mais o mesmo ao redor do Jardim, eu descobri que nem sempre se tinha delicadeza e carinho ao nosso redor, e algo estranho também acontecia com os habitantes de outros jardins.

Mas eu ia vivendo, e como todos crescendo, a vida continuava a traçar seu curso por entre as curvas do rio, e tudo ia seguindo segundo o plano de Deus para cada um de nós.

Mas um dia, como outro dia qualquer, eu fui atingida no meio do caminho, por uma pedra, e com isto veio a queda, fui então despedaçada e rasgada à força e no meio de um trovão que tocou a terra e fez tudo estremecer em um pequeno instante, algo inesperado, mas muito forte e gigantesco, que invadiu meu caminho e violou as margens do rio, uma represa muito grande estourou, e o sangue pisado jorrou por toda a planície deixando acidentes e marcas profundas em seu caminho, e com sua força e seu vermelho fervilhante tudo mudou e tirou do lugar.

Quando a tormenta passou, restaram apenas destroços e cacos do jarro quebrados no chão.

Eu estava morta.

Os outros rios continuaram o seu caminho, e a vida se derramou em seu curso de rio e a tudo fertilizou, o meu rio não, foi estancado, aterrado com a violência de toda a tormenta, restou a terra encharcada e tudo despedaçado e rasgado ao meu redor, e no meio de tudo isto apenas uma menina desacordada e ferida, que quando conseguiu acordar nada mais reconheceu, e perdida que estava permaneceu, encontrou apenas deserto escaldante e desolado, nele entrou e nunca mais se ouviu falar daquela menina, que um dia foi vista ferida cambaleando entre dunas de areia e sumiu, desapareceu.

Então os destroços que haviam sobrado no chão encharcado em um instante se juntaram, e surgiu uma nova pessoa forjada na escuridão, sempre em negro de luto, sempre soturna, sempre mergulhada na noite escura, o luto da falta da menina em sua essência a cobriu e ela habitou os mundos secretos da noite escura e das tempestades salpicadas de trovão.

Mesmo assim ela continuou a andar, cambaleante e tropeçando, arrastando correntes e trevas por onde passasse, a Filha de Lilith a Lua Negra, a noite escura, a morte em vida de noite sem luz e sem fim.

Os passos eram insuportáveis, porque por mais que ela se tornasse uma pedra gelada e dura, no fundo ainda sobrara um pouco do brilho daquela menina no seu olhar, e isto a fazia contorcer-se de dor, e raiva!!!

Porque a dor era insensante, porque nada passava a não ser pela ferida ardente a cada segundo de sua existência, porque a noite cobriu suas vestes, e isto fazia ela desejar explodir tudo, especialmente ela mesma, amante de seu próprio fim, o caminho do desespero nos faz muitas vezes a morte amar.

Eu amei a morte, e durante muito tempo segui seus passos na floresta escura e velha que tomou todos os espaços do meu lugar.

A Filha da Lua Negra a tudo amaldiçoou, em puro ódio e raiva se cortou várias vezes, o sangue jorrava para fora depois de jorrar para dentro, insanidade em seus olhos e raiva porque existia a dor, sempre a dor, mas o que mais a enraivecia era o fato de que ela não conseguia se tornar fria, a ponto de nada sentir.

Por mais que tentasse, nunca conseguia apagar o pouco brilho que restou da menina em seu olhar, e isto fazia a dor piorar, porque eu sentia!!! Sentia de fato, e não podia nunca deixar de sentir. A morte cobriu meus passos e meus horizontes, um dia cansada eu observei que tudo estava estragado, e que por mais que tentasse caminhar, sempre haveriam os troncos mortos caídos à minha frente na estrada, mas mais do que isto, quem derrubava os troncos era eu, e não adiantava mais lutar, porque não havia como da morte em vida escapar.

Então uma noite havia entre eu e a vida uma faca, novamente uma faca, olhando para mim com olhar desafiador.

A faca fazia promessas de ser o alívio final da tragédia, mas naquela noite perdida no tempo Alguém falou comigo, no último instante, no momento final, no último ato.

E pela primeira vez na vida eu me dispuz a ouvir, tudo estava consumado, não havia mais perdas e danos além do que já havia então perdido, não havia mais porque teimar em não ouvir, e eu ouvi.

Allah Akbar!

A voz me ensinou que não haveria vida sem morte e começo sem fim, que havia chegado a hora de se entregar, que haveria depois desta noite talvez um novo dia, mas para isto eu teria de aceitar e amar este fim.

Houve então a promessa de uma nova manhã, eu então aceitei o túmulo e com isto mergulhei dentro de mim...

Allah hu Akbar!!

Coberta de negro me fiz peregrina, voltei ao deserto e nele então mergulhei, em busca daquela menina que se perdeu com a tormenta de sangue que tudo destroçou.

Eu sou aquela menina, eu sou também a peregrina, que rasgou suas vestes e suas carnes em busca daquela menina, se ela morresse antes de ser resgatada, eu também morreria porque não existo sem minha essência, não existiria sem mim.

A peregrina entrou no deserto, e encontrou a menina, mas apenas uma delas das areias voltou, e foi a menina, que só sobreviveu com a morte da peregrina, que doou sua vida para reencontrar a menina, que então pode retomar o seu caminho, e depois de um tempo conseguiu à praia chegar.

Mas eu venci!!!

Por Allah, eu venci! Venci a dor, venci a morte, venci a discórdia dentro de mim, venci os meus agressores, e por vencer é que hoje estou aqui, escrevendo este texto e vivendo de fato, há novamente a primavera em mim!

E é por ter vencido que hoje estou nesta praia ensolarada lançando minhas velas ao vento e navegando no imenso e lindo Mar sem fim.

Esta é a vida com todas as cores e aromas e flores quando se tem de viver.

Vale a pena lutar, e muitas vezes, vale a pena morrer!

Allah hu Akbar!
Maa Salama!

Um comentário:

hanan disse...

masha Allah muitooo lindo!!!